Uma intuição proféticaSanto António Maria Claret ainda entendendo o essencial do pensamento que Deus lhe inspirava – proporcionar uns meios que fizessem possível viver a consagração a Deus no meio do mundo- não podia medir as consequências às que levaria o desenvolvimento e a vivência desta ideia.
Um pensamento que o Senhor me inspirou
O ponto de partida de Claret é, como em todas as suas atividades, o seu zelo apostólico. O santo observa o mundo procurando que nada fique à margem do plano de Deus. Na sua tentativa de procurar meios de salvação para todo o tipo de pessoas, repara num: as jovens que chamadas a viver uma consagração radical a Jesus Cristo hão de permanecer no mundo. Assegura que temeria faltar ao seu dever se não se preocupasse com elas e deixa ver com uma segurança que impressiona que se trata de um PENSAMENTO INSPIRADO que o ocupou muitíssimas vezes diante de Deus, descobrindo os caminhos de uma autêntica vocação que terá de esperar um século até encontrar o seu marco jurídico preciso dentro da Igreja: o dos Institutos Seculares.
Depois de ter procurado dar a todo o tipo de pessoas os meios que me pareceram mais conducentes para que alcancem a sua santificação… temeria faltar ao meu dever e à caridade universal que Deus me inspirou, se não cuidasse de oferece-los a um tipo de pessoas que sempre chamou a minha atenção e cuidados nas minhas correrias apostólicas, e que me ocupou muitíssimas vezes diante de Deus.
O Senhor a quem escolhestes por esposo, e a quem consagrastes o vosso coração, olhou-vos com olhos compassivos, aceitou a vossa entrega e quer admitir-vos por esposas… Pelo menos assim mo faz crer um pensamento que o Senhor me inspirou, e que vos proporcionará a realização de todos os vossos desejos abrindo-vos um novo claustro… e este será o Santíssimo e Imaculado Coração de Maria.
Chamadas ao Claustro do Coração de MariaO Coração Imaculado de Maria há de ser para as suas filhas:
Claustro que abriga e dá segurança, calor de lar (calor de hogar?) e ambiente de família. “… ele será o vosso lar…onde encontrareis o lugar do vosso repouso, da vossa felicidade…”
Arca que simboliza a arca de Noé como meio de salvação e a arca da Aliança que guardava as tábuas da lei e um pouco do maná que alimentou os israelitas no deserto. Da mesma forma, no Coração da Virgem Mãe as suas filhas encontrarão a Lei gravada no interior, isto é, a Lei do amor da nova Aliança e o Pão Vivo cuja carne nos veio através de Maria. Ditosas uma e mil vezes as que tereis a sorte de entrar nesta arca sagrada!
Madrepérola que significa a vida que esconde dentro de si um valor que não se descobre à vista desarmada: tem que se penetrar no interior. Não é apenas a que protege e guarda mas a que conduz à autêntica união com o Filho na morada mais íntima do seu Coração. Estareis dentro do sagrado Coração de Maria e isto vos bastará!
Um caminho novo de castidade consagrada
Claret propõe, com milhares de argumentos e com uma força enorme, a virgindade consagrada como um caminho perfeitamente válido de realização pessoal. Jesus Cristo pode elevar as mais profundas aspirações do ser humano.
Quero-vos colocar aqui, jovens, o que diz a cada uma de vós o próprio Deus através do seu profeta Oseias: “Te desposaré conmigo para siempre, te desposaré en justicia y en derecho, en amor y en ternura; te desposaré en fidelidad y tú conocerás al Señor”
É interessante constatar a grande lucidez de pensamento com que o Pe. Claret afirma que não são as estruturas externas as que determinam o valor da vida consagrada mas a total entrega da pessoa à causa do Evangelho. Por isso sublinha, com verdadeiro enfase, o valor testemunhante da virgindade consagrada no meio do mundo e as possibilidades apostólicas que se abrem com este estilo de vida.
Parece-me ter-vos dado bastantes provas da sinceridade do meu coração …Quero facilitar-vos os meios de santificação, mostrando-vos um caminho que milhares de virgens santas seguiram já desde os primeiros séculos do cristianismo. Com efeito, a história assegura-nos que desde o princípio houve virgens consagradas ao Senhor e que viviam no meio do mundo…
Deus sabe quão úteis podereis ser permanecendo no mundo… quer-vos fazer “apóstolas” das vossas famílias…
E o bem que fareis não ficará limitado ao pequeno recinto das vossas casas: muito mais se estenderá, porque a luz das vossas boas obras resplandecerá como uma tocha, e os povos glorificarão o vosso Pai e Esposo celestial.
Santo António Maria Claret propõe umas regras e umas etapas de preparação que hão de seguir quem deseje ser Filha do Santíssimo e Imaculado Coração de Maria. De forma clara aparece o seu propósito de fundar uma nova família na Igreja.
Espantosamente no Livro ficam traçados os elementos essenciais que configuram o espírito de Filiação Cordimariana:
- a busca da santidade
- uma intensa e contínua vida de oração
- uma tarefa apostólica que, por abraçar todas as possibilidades que oferecia a sociedade do século XIX, permite-nos ver com clareza a dimensão de universalidade que o Padre Claret queria dar ao apostolado das sus filhas. Audaz de maneira especial ao recomendar a catequese, tarefa vetada às mulheres no seu tempo.
- a permanência no mundo com um sentido idêntico ao que, um século mais tarde, a Igreja reconheceria como missão própria dos Institutos Seculares: “…procurando santificar as ações ordinárias da vida”
- Um testemunho de vida que convide os outros ao seguimento de Cristo: “Com o seu bom exemplo procurarão edificar todo o mundo”
-A identificação com Jesus Cristo até ao amor maior (¿). “Amarão os seus próximos como Jesus nos amou, e por isso se lembrarão do muito que fez e sofreu por nós, porque aprendam elas a fazer outro tanto pelos seus próximos, e assim, como esposas de Jesus, imitem o seu Esposo”. “Procurarão em todas as coisas imitar a Jesus Cristo…; para isso terão cada dia pelo menos meia hora de oração mental, que poderão fazer, se não têm outro tempo, no meio das suas ocupações”.
- A vivência dos Conselhos Evangélicos de castidade, pobreza e obediência.
- A semente lançada com tanto amor por Santo António Maria Claret não ficou infecunda.
Durante quase um século as páginas deste pequeno livro alentaram e orientaram a entrega de jovens que, chamadas por Deus a pertencer-lhe por inteiro permanecendo no mundo, não encontravam na Igreja um marco apropriado para desenvolver a sua vocação. Uns anos antes do nascimento oficial dos Institutos Seculares, a intuição claretiana ressurge com uma força desconhecida, como um presságio de tempos novos para a vida consagrada na Igreja. A hora de Deus soa em Placência, Espanha, em 1943. Um grupo de missionários claretianos recolhe a luz acesa pelo Padre Claret determinado a converter em realidade a sua esperança. O livro começa a ser norma de vida para um grupo de jovens que o assumem com entusiasmo, dedicadas a constituir-se em família dentro da Igreja. Simultaneamente a chispa acende em distintos lugares da Europa e América e organizam-se diversos grupos. Em todos eles alenta a idêntica Vida adivinhando-se já uma unidade singularmente rica na diversidade que lhe deu origem.
Em 1947 Pio XII promulga a Constituição Apostólica “Provida Mater Ecclesia” reconhecendo e aprovando, entre as formas de vida consagrada, os Institutos Seculares. O sonho do Padre Claret tem já o seu próprio caminho dentro da Igreja e todos os esforços organizativos encaminham-se à sua definição como Instituto Secular.
Em novembro de 1973, festa da Apresentação da Virgem, Filiação Cordimariana é aprovada pela Igreja como Instituto Secular de Direito Pontifício. Fiel ao pensamento claretiano, procura incendiar o mundo no fogo do Amor de Deus desde o Claustro materno do Coração de Maria.
Santo António Maria Claret
Santo António Maria ClaretAntónio Claret chega à vida em Sallent, província de Barcelona, a 23 de dezembro de 1807, no seio de uma família que não conhece outra norma de vida que não seja a que nasce de uma profunda fé. Descobre o amor de Deus com a mesma naturalidade com que descobre o de sua mãe e, ainda que o momento histórico-politico seja sumamente difícil, aprende por experiência própria, desde pequeno, que o Deus que Jesus Cristo nos revela é, sobretudo, Pai.
Humanamente é inteligente, dócil, carinhoso com os seus, de uma habilidade pouco comum para o trabalho ao que pensa destinar-lhe seu pai: tecedor. Junto a estas qualidades há também, desde o princípio, uma inclinação particular a “intimar” com o Senhor como com um amigo, o olhar para a Virgem como a Mãe do Amor de quem é possível esperar tudo e a preocupar-se seriamente por aqueles que podem condenar-se à eterna ausência de Deus. Quando conta apenas 5 anos a ideia de “sempre, sempre, sempre” não lhe sai da cabeça. Na sua mente de criança começa a crescer o desejo de levar a todos a Palavra oportuna que os salve [1].
A sua história transcorre como a de qualquer jovem do seu tempo: sofre as vicissitudes próprias de um país em guerra, prepara-se para a vida segundo o plano previsto pelo seu pai… mas o seu coração sonha com outros horizontes, anela outras metas que não o deixarão descansar jamais e que, rapidamente, orientarão os seus dias de modo definitivo. Aos 20 anos ressoará no seu interior, como um golpe, a palavra do Senhor: “Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua vida? “ [2] A reação é imediata e muito própria de um espírito fogoso como o seu: decide deixar tudo e ir para a Cartuxa. Mas o projeto não chega a realizar-se e entra no Seminário de Vic. Ali começa uma história de entrega incondicional à causa do Evangelho que ainda hoje prossegue com os seus filhos e filhas dispersos por todo o mundo.
Nestes primeiros anos de formação sacerdotal, está muito presente a Virgem Mãe. Em 1831, enquanto estuda o segundo ano de filosofia, sofre uma forte tentação contra a castidade. Invoca Nossa Senhora, que lhe aparece com uma coroa de rosas na mão e lhe diz: “António, esta coroa será tua, se vences” [3]. Movido pela Palavra de Deus e a leitura da vida dos santos, desperta no seu coração a vocação apostólica, que vê com toda a clareza na ordenação de diácono, a 20 de dezembro de 1834, quando o Bispo pronunciou as palavras do Pontificial, tiradas de S. Paulo: “Porque não é contra os seres humanos que temos de lutar, mas contra os Principados, as Autoridades, os Dominadores deste mundo de trevas”. [4]
No dia 13 de junho de 1835 é ordenado sacerdote. Em Sallent, sua terra natal, celebra a primeira Missa. Poucos anos depois, em 1839, não bastando a sua incansável atividade, viaja a Roma para oferecer-se à Propaganda Fide e, dali, ser enviado como missionário a qualquer lugar do mundo. O Espírito do Senhor, que o conduz, levá-lo-á até ao noviciado dos jesuítas com o fim de o preparar para a missão a que o tinha destinado. uma doença inesperada é a segunda causa que motiva o seu regresso a Espanha. São estes os anos (1840-1847) de missionário em Catalunha. De sul a norte, de este a oeste, percorre-a uma e outra vez sem mais equipamento que um atilho e sem mais mensagem que o Evangelho de Jesus Cristo.
Por estas datas começa a gerar-se no seu coração um livro que terá ressonâncias proféticas: Filhas do Santíssimo e Imaculado Coração de Maria. Até 1846 já tinha reunido algum material que completa no ano seguinte. Esta obra, de pequeno formato mas de grandes ecos, bem pode considerar-se como uma das precursoras dos Institutos Seculares: atreve-se a propor a consagração da vida sem outro claustro que o Coração de Maria. As dificuldades derivadas da audácia da sua proposta são causa de que o livro não possa ver a luz até ao ano de 1850.
Em 1847 publica as Constituições da Irmandade do Coração de Maria. Com esta iniciativa tenta organizar e promover o apostolado laical desde a força apostólica do Coração de Maria, reunindo num só grupo a sacerdotes e leigos- homens e mulheres- impulsionados pelo mesmo ideal apostólico e as mesmas normas fundamentais.
Nos inícios de 1848 parte para as Canárias onde ainda hoje, século e meio mais tarde, é recordado como “o Padrito”. Durante algo mais de um ano prega em Tenerife e missiona na Gran Canária e Lanzarote.
Em maio de 1849 regressa à Península e organiza a Livraria Religiosa- fundada em 1847 com D. José Caixal e D. Antonio Palau- com o fim de difundir a boa imprensa.
A 16 de julho desse mesmo ano, 1849, numa sala do Seminário de Vic, funda a Congregação de Missionários Filhos do Imaculado Coração de Maria. Com visão profética diz ao reunidos: “Hoje começa uma grande obra”. Não tinha passado um mês quando, inesperadamente, recebe a nomeação de Arcebispo de Cuba. Enquanto espera a partida para a sua diocese dedica o ano a pregar por onde quer que passe. A 28 de dezembro, com um grupo de missionários, embarca rumo a Cuba. Começam uns anos duros que abraça com o ímpeto e o amor do seu ser de apóstolo.
Nos seus afãs missionários preocupa-o de um modo especial a educação da infância e da juventude. É o momento no qual, inspirado por Deus, funda, com a Madre Maria Antónia Paris, a Congregação de Religiosas de Maria Imaculada Missionárias Claretianas para ensinar a toda a criatura a Lei Santa do Senhor.
A 1 de fevereiro de 1856 está a ponto de realizar o seu sonho de dar a vida por Cristo. Sofre um atendado em Holguín que podia ter sido mortal. Mas o Senhor ainda o queria entre os irmãos, trabalhando para a Sua glória.
Em 1857 regressa a Espanha com uma nova tarefa: confessor da Rainha Isabel II. Ver-se-á obrigado a residir na Corte e está será a cruz mais pesada: não poder ir de um lugar a outro levando a Luz da Palavra. N entanto, a sua constante preocupação apostólica fá-lo-á encontrar caminhos e modos para ser fiel ao seu ser de missionário. Madrid será a sua nova terra de missão.
Era chegado o momento de transformar em realidade um projeto nascido durante a convalescença das feridas causadas no atentado de Holguín: a “Academia de S. Miguel”: “Logo que me levantei comecei a desenhar a estampa e a escrever o regulamento, que atualmente está aprovado pelo Governo com Real Cédula e celebrado e recomendado pelo Sumo Pontífice Pio IX”[5]. Em 1859 inicia esta obra com a publicação do dito Regulamento.
Consistia numa associação de literatos, artistas e propagandistas sob a proteção de São Miguel. A sua finalidade específica consistia em penetrar de espírito evangélico as realidades temporais através de leigos comprometidos que se dedicassem a uma espécie de “consagração do mundo” utilizando as ciências e as artes. Pretendia fomentar a vida cristã em todos os seus membros e lança-los a um apostolado universal. Transcorrido mais de um século, o Movimento de Leigos Claretianos encontrará nesta obra do Padre Fundador um dos seus antecedentes.
Acompanhando a família real, passa os verões em La Granja de San Ildefonso. Nesta pequena localidade segoviana, a 26 de agosto de 1861, recebe a singular graça mística de conservar no seu interior o Senhor sacramentado de uma comunhão a outra. Será, daí em diante, um Sacrário vivente.
Em 1868, com os Reis, expulsos pela Revolução, passa para França onde reside primeiro em Pau e depois em Paris. Em março do ano seguinte consegue separar-se da Corte e parte para Roma. Ali dedica-se à oração, ao estudo e à preparação do Concílio Vaticano I. Também encontra tempo para pregar, visitar hospitais e ensinar o catecismo.
Em 1870 participa no Concílio defendendo o dogma da infalibilidade pontifícia. Em julho desse ano, interrompido o Concílio, muda-se para Prades, França, par descansar. Pressente já a sua morte.
A Revolução espanhola, que não deixou de o perseguir, tenta alcança-lo no desterro. Precipitadamente foge para Fontfroide, perto de Narbona, refugiando-se naquele mosteiro cisterciense. Desterrado, pobre, só, mas na paz de uma casa dedicada à oração, aguarda o encontro cara a cara com o Seu Senhor por quem perdeu tudo e tudo o considerou como lixo.[6].
No dia 24 de outubro, pelas 8h45, concluiu o seu caminhar entre nós. Contava 62 anos. Hoje, século e meio mais tarde, continua a evangelizar. A Família Claretiana, estendida pelo mundo inteiro, continua a sua missão e oxalá saiba fazê-la com o mesmo zelo, com a mesma entrega sem condições, com o seu incansável esquecimento de si em favor do Evangelho.[7]
Olga Elisa Molina
[1] Cf. Autobiografia, n. 8.
[2] Mt.16,26.
[3] Autobiografia, n. 96.
[4] Ef. 6, 12.
[5] Autobiografia, n. 581.
[6] Cf. Fl 3, 8.
[7] Para um estudo da vida e obra de Santo António Maria Claret pode ver-se: AGUILAR, F.: Vida del Excmo. e Ilmo. Sr. D; Antonio María Claret, misionero apostólico, arzobispo de Cuba y después de Trajanópolis (Madrid 1871) 428 pp.; CLOTET, J.: Resumen de la admirable vida del Excmo. e Ilmo. Sr. Don Antonio Maria Claret y Clará (Barcelona 1882) 348 pp.; AGUILAR, M.: Vida admirable del siervo de Dios P. Antonio Maria Claret, fundador de la Congregación de los Misioneros Hijos del Inmaculado Corazón de Maria (Madrid 1894) 2 vols., 638 y 536 pp.; FERNANDEZ, c.: El Beato P. Antonio Maria Claret Historia documentada de su vida y empresas (Madrid 1946) 2 vols., 1066 y 930 pp.; CABRE RUFATT, A.: Evangelizador de dos mundos. Vida anecdótica de San Antonio María Claret (Santiago de Chile 1977) 174 pp. (Barcelona 1983) 208 pp.; LOZANO, J. M.: Una vida al servicio del Evangelio. Antonio Maria Claret (Barcelona 1985) 608 pp. – Como obras básicas indispensables para conocer la vida, la obra y la espiritualidad claretiana, hay que señalar su Autobiografía y otros documentos del Santo agrupados en tres volúmenes complementarios: SAN ANTONIO MARIA CLARET: Escritos autobiográficos. Trascripción, introducciones y notas por José María Viñas y Jesús Bermejo, misioneros claretianos. BAC (Madrid 1981) 740 pp.; SAN ANTONIO MARIA CLARET: Escritos espirituales. Edición preparada por Jesús Bermejo, misionero claretiano, BAC (Madrid 1985) 528 pp.; SAN ANTONIO MARIA CLARET: Escritos marianos. Edición preparada por Jesús Bermejo, CMF. Estudio preliminar por José María Viñas, CMF, Publicaciones Claretianas (Madrid 1989) 470 pp. – SAN ANTONIO MARÍA CLARET: Autobiografía y escritos complementarios. Edición del bicentenario preparada por José María Viñas y Jesús Bermejo. Editorial Claretiana (Buenos Aires, 2008) 1026 pp.
Coração de fogo
O coração ardente que Deus concedeu a Santo António Maria Claret, sentia a necessidade de saltar todas as fronteiras, anunciar o Evangelho sempre e em toda a parte. Esta é, sem dúvida, a raiz mais profunda do seu carisma de fundador. E nesta raiz - ousadia de amor que atravessa tempos e estruturas - tem a sua origem o nosso Instituto.
Entre 1840 e 1850 uma ideia singular começou a rondar o coração de Claret e a “ocupá-lo diante de Deus”: a possibilidade de viver a plenitude da consagração permanecendo no mundo junto dos outros homens e mulheres, tendo por claustro o Coração de Maria. A certeza desta possibilidade, amadurecida nele pelo Espírito do Senhor, ficou plasmada num livro publicado em 1850 e que intitulou “Filhas do Santíssimo e Imaculado Coração de Maria”.
O ideal apresentado, que fazia possível a secularidade consagrada, foi revolucionário na sua época e Filiação Cordimariana só pôde ser um manancial que nascia no silêncio.
Em 1943 um grupo de Missionários Claretianos acolhe com amor a intuição profética do Pe. Claret e o livro começa a ser “norma de vida” para alguns grupos de mulheres que se organizam não só em Espanha, mas também em vários locais da Europa e América: em todos eles alenta à mesma vida, adivinhando-se já uma unidade singularmente rica nessa diversidade que lhe deu origem.
Em 1947 Pio XII promulga a Constituição apostólica “Provida Mater Ecclesia” que reconhece e aprova os Institutos Seculares. O sonho do Pe. Claret tem já o seu próprio caminho dentro da Igreja e os esforços empreendidos na organização visam já a sua definição como Instituto Secular.
A 21 de Novembro de 1973, festa da Apresentação da Virgem, Filiação Cordimariana é aprovada pela Igreja como Instituto Secular de Direito Pontifício.
Consagração e Secularidade, sob a inspiração materna do Coração de Maria, são o nosso modo de ser Igreja e de realizar a nossa missão no mundo, com o ardor apostólico do nosso Fundador.
A Consagração indica a mais íntima e secreta estrutura do nosso ser e do nosso agir. É, simplesmente, viver a plenitude do amor ao estilo de Cristo. A profissão dos conselhos evangélicos leva-nos a viver com radicalidade a nossa consagração batismal e a seguir e imitar mais de perto a Jesus Cristo no meio das realidades temporais, no meio das condições ordinárias da vida. Assim consagramos o mundo a Deus no mais íntimo do nosso coração e inoculamos desde dentro, como fermento, a força dos valores evangélicos aos valores humanos e temporais.
O nosso ideal de vida, plasmado no nosso Direito Próprio, é claro e entusiasmante:
A vivência da castidade manifesta, qual milagre, no nosso ser, a ilimitada profundidade, a doação total e a universalidade do Coração de Deus a um mundo que se inclina sobre si mesmo egoisticamente. Liberta o nosso coração, tornando-o fecundo, para que se inflame mais no amor de Deus e de toda a humanidade.
A nossa pobreza voluntária pelo seguimento de Cristo diz ao mundo a bem-aventurança da liberdade no uso dos bens temporais e dos meios de civilização e progresso sem se deixar escravizar por eles e manifesta, ao mesmo tempo, a presença e a solidariedade com os irmãos que sofrem.
A nossa obediência evangélica revela ao mundo a felicidade libertadora de viver sob a vontade de Deus Pai na mediação da Igreja, do Instituto e, através dos sinais dos tempos, na vida quotidiana.
A Secularidade indica a nossa inserção no mundo como lugar próprio da nossa responsabilidade cristã. Não equivale a uma presença no mundo meramente física ou sociológica, nem ao facto de realizar um trabalho profissional. Implica, sobretudo, uma atitude interior face às suas realidades e ao modo de estar imersas nele, partilhando as fadigas e as esperanças de toda a humanidade. É-nos exigido viver no mundo, lado a lado com todos os irmãos, inseridas como eles nas vicissitudes humanas, responsáveis com eles das possibilidades e riscos da sociedade, implicadas nas mais variadas profissões ao serviço do projeto de Deus que não é outro que conseguir que o homem viva. Os membros dos Institutos Seculares hão-de ser, por vocação, segundo o dizer de Paulo VI, “peritos em humanidade”. Estamos chamadas a prolongar de um modo particularmente intenso o mistério da Encarnação do Filho de Deus que se fez homem, que passou por um de muitos e passou fazendo o bem.
Da mesma forma, temos como missão levar a todos e a tudo a sua plenitude em Cristo, restaurando o sentido e a bondade de tudo o Criado porque toda a Criação está consagrada desde o princípio. “E Deus viu que era bom” (Gn 1, 18).
Estamos chamadas a estar presentes no mundo (Est. art 39), a centrar o nosso olhar no mundo que nos rodeia, na missão que nos foi encomendada de ser luz, sal e fermento de Evangelho que transforma a massa, nas condições ordinárias da vida: a partir da simplicidade, do quotidiano, do pequeno, do impercetível. Desejamos contemplar o mundo com os olhos e com o Coração de Deus... com os olhos e com o Coração de Nossa Senhora! Este é- e não outro- o olhar que os membros dos Institutos Seculares hão-de dirigir ao mundo. (cf. Paulo VI aos II.SS.: 02/02/72 e 20/09/72)
O compromisso batismal, afiançado pela consagração, leva-nos a trabalhar na caridade de Cristo pela salvação deste mesmo mundo para configurá-lo segundo o desígnio divino e santificá-lo desde dentro, sem nos subtrairmos nunca das exigências do Evangelho. Assim, a nossa condição sociológica converte-se em realidade teológica e em caminho de salvação. (cf. Paulo VI aos II.SS.: 02/02/72 e 20/09/72)
Em virtude desta secularidade para atuar no mundo e o fazer presente à Igreja, sacramento de Salvação, foi-nos dada como missão o testemunho da vida e da palavra para que a luz do Evangelho brilhe na vida diária e adquira uma singular eficácia nas condições comuns do mundo e naqueles lugares e circunstâncias aos que só pode chegar por nosso meio.
A nossa tarefa evangelizadora, portanto, é tão simples, variada e universal como a própria vida e abraça, com idêntico empenho, tanto os âmbitos do trabalho profissional (escolas, universidades, hospitais, comércios, trabalho social…) como a inserção na pastoral de conjunto das respetivas Igrejas locais e a colaboração direta com outros Ramos da Família Claretiana.
A nossa forma de viver pode ser na própria família com os pais ou irmãos, em grupos fraternos ou sozinhas, fomentando-se entre nós fortes laços de comunhão que ultrapassam o meramente circunstancial dos lugares, modos de vida, idades, culturas, etc.
Para nós, chamadas a viver sob a influência materna do Coração de Maria, o modelo perfeito desta vida de consagração secular é Maria. Ela configura-nos ao Filho na frágua do seu amor. N’Ela vivemos para prolongar a sua maternidade espiritual no meio de todas aquelas situações que reclamam uma nova “visita” de Deus aos homens, sedentos de salvação e de esperança. Com a simplicidade e humildade de Nossa Senhora permanecemos no meio das situações ordinárias da vida, atuando à maneira de fermento, sendo geradoras da Vida de Cristo, como nas bodas de Caná. Nós, como Maria, prolongamos o seu ser maternal neste mundo tantas vezes sem mãe, recriando as estruturas, transformando-as através dos nossos trabalhos, dos nossos cuidados… sendo laboratório experimental, ala avançada da Igreja, abrindo novos caminhos de evangelização nos âmbitos mais variados com uma marcada sensibilidade que leva a uma autêntica promoção da mulher e ao mundo dos excluídos. O nosso ser e a nossa missão hão-de fazer germinar os valores do Reino através da solidariedade com todos aqueles que já não “vivem”, com todos aqueles a quem se lhes nega a vida.
Como Claret quis desde a primeira hora, o Coração de Maria é para nós ambiente, claustro e motor que nos lança ao mundo com a mesma urgência evangelizadora. “A luz das vossas obras resplandecerá como uma tocha” (Pe. Claret, Livro Fundacional).
Deste modo, ser filhas do Coração de Maria implica uma forte chamada, como dom e tarefa, a ser irmãs e a mimar a graça de uma fraternidade que brota da nossa identidade mais genuína: “Somos irmãs porque somos filhas”.
Estamos persuadidas de que mais que pelas obras, a nossa vida é fecunda pelo Ser. É de vital importância, portanto, estar em contínuo contacto com o Senhor através da oração e da escuta da Palavra que nos levam a viver desde Ele todas as circunstâncias sendo assim contemplativas na ação como o foi Maria. A Eucaristia é o centro do nosso dia e nela renovamos, cada dia, a nossa consagração para ser com Cristo e n’Ele pão que se parte e reparte para a vida do mundo.
Resumindo, uma Filha do Coração de Maria é uma mulher que vive desde a interioridade do Coração de Maria o mistério da encarnação de Jesus no quotidiano, na história do homem de hoje e une a radicalidade da consagração- em castidade, pobreza e obediência- e da secularidade “para que o mundo tenha coração”.
Atualmente Filiação Cordimariana vive e trabalha em vários países da Europa e América, concretamente em Espanha, Itália, Portugal, Inglaterra, Argentina, Brasil, Colômbia, Panamá, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela.
Terminamos, a modo de síntese, com a voz de João Paulo II aos Institutos Seculares na sua belíssima exortação apostólica “Vita Consecrata”:
O Espírito Santo, artífice admirável da diversidade de carismas, suscitou no nosso tempo novas expressões de vida consagrada, como que desejando corresponder, segundo um desígnio providencial, às novas necessidades que a Igreja encontra hoje no cumprimento da sua missão no mundo.
Vêm ao pensamento, antes de mais, os Institutos Seculares, cujos membros pretendem viver a consagração a Deus no mundo, através da profissão dos conselhos evangélicos no contexto das estruturas temporais, para serem assim fermento de sabedoria e testemunhas da graça no âmbito da vida cultural, económica e política. Através da síntese de secularidade e consagração, que os caracteriza, eles querem infundir na sociedade as energias novas do Reino de Cristo, procurando transfigurar o mundo a partir de dentro com a força das bem-aventuranças. Desta forma, ao mesmo tempo que a pertença total a Deus os torna plenamente consagrados ao seu serviço, a sua atividade nas condições normais dos leigos contribui, sob a ação do Espírito, para a animação evangélica das realidades seculares. Os Institutos seculares contribuem assim para garantir à Igreja, segundo a índole específica de cada um, uma presença incisiva na sociedade (nº 10).
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